Acidente #1
Uma prévia de Popeye / Fragmento do romance Sanhaçu / Resenhas de MOTOMAMI (Rosalía) e Fantasmas da Minha Vida (Mark Fisher) / + poemas inéditos, fotografias e indicações musicais
Acidente é uma publicação trimestral editada por Ivana Fontes e Mateus Borges.
Da série “Casas entre Valparaíso e Santiago”, de Leonardo Amorim.
✦ acidente / prévia
popeye
ecolalia
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Reuel Albuquerque é músico e produtor com atuação na cidade de Maceió. O EP “baby talk” é o lançamento mais recente do projeto ecolalia.
✦ acidente / resenha
MOTOMAMI — Rosalía
Ivana Fontes
“Chicá, que dices?” é o que primeiro se escuta em Motomami (2022); uma forma de dizer “Pode repetir, por favor?”, normalmente sucedida pela frase em volume mais alto. O grito que vem depois, com o refrão de “Saoko”, toma conta do ambiente de forma destrutiva, numa aura veloz e arriscada, e compõe a estética urbana reconhecida no clipe da mesma música. Nele, a cantora pilota uma moto, junto com outras mulheres que fazem manobras ao longo da pista – o famoso “dar grau”, em termos mais brasileiros.
Quando perguntada sobre Saoko, ela explicou ao Genius que é uma palavra originada na África, que significa “energia, movimento”, e que sua inspiração também veio do reggaeton “Saoco”, do cantor e rapper Wisin. Em Motomami, o controle está com Rosalía. Ela tem total autoconsciência de tudo o que está fazendo e arriscando ao longo do disco, das referências com que quer trabalhar e do que quer criar a partir delas. De fato, a mensagem é de que ela guia a sua própria transformação e ninguém pode limitar sua capacidade de se modificar, se contradizer e se movimentar.
A estética gamificada também é bem presente, lembrando GTA até mesmo na ideia dos cenários, numa pegada futurista, que se mescla com as alusões a ritmos mais tradicionais como o flamenco e o reggaeton nas músicas. Sonoramente, isso também acontece com o uso de autotune em algumas faixas, acompanhadas das linhas de baixo de sintetizadores estourados. É interessante como “Saoko” ou “Chicken Teryiaki” não seriam vistas com estranheza por quem gosta de funk carioca, já que trabalham com graves e ruídos de forma semelhante, com uma espécie de progressão de velocidades/ritmos.
“Candy”, segunda faixa do disco, mostra mais um aspecto da “mistura” que Rosalía está interessada, trazendo uma interpolação de “Archangel”, do Burial, um dos artistas mais inovadores de música eletrônica hoje – além do repertório amplo da cantora, a capacidade de transformar a melodia do Burial em algo tão autoral é louvável, com o claro ritmo de um reggaeton super pop. “Candy”, junto com a música que vem depois, “La fama”, são talvez as mais pops do álbum. “La fama”, com feat. do The Weeknd, é também um reggaeton, mas mais envolvente e cíclico que o anterior, um convite mesmo para dançar. A voz do The Weeknd cantando “es mala amante la fama y no va quererte de verdad” acompanha uma melodia difícil de esquecer, com percussões sensuais, que a tornam mais comercial que as outras.
Em Bulerías, a voz de Rosalía emana um espírito ritualístico, com coros, castanholas, violões e percussões, e o prolongamento trêmulo de vogais, característico de canções flamencas tradicionais. No refrão, em que ecoa “yo soy la niña de fuego”, Rosalía lembra a canção de Manolo Caracol, um dos maiores cantores da história do flamenco, e consegue trabalhar muito bem os ritmos e espaços entre os versos, citando referências de Lil’ Kim, Tego e M.I.A, os dois primeiros artistas de rap e a segunda um dos maiores nomes do pop dos anos 2000, lembrada por suas misturas inesperadas entre pop, música eletrônica e hip hop.
Difícil ouvir um álbum como “Motomami” e não comentar sobre quase todas as músicas. Não podemos deixar de destacar “Hentai”, a primeira canção mais contida e lenta de Motomami, em que Rosalía explora seu lado mais romântico. “Te quiero ride, como a mi bike” - de novo emerge o explorar, procurar, arriscar – dessa vez o outro. O refrão cativante nos remete ao “Blonde”, do Frank Ocean, principalmente com o piano e os agudos dela destacando melodicamente, com violinos tímidos e um drama próprio do R&B mais moderno, também encabeçado muitas vezes por nomes como Kanye West, que costuma usar bastante das batidas aceleradas entre os versos, tocadas do meio para o fim da faixa.
A música “Motomami” já tem uma percussão bem-marcada, com estalos, baixo pesado. Com pouco mais de 1 minuto, a faixa consegue trazer acordes dissonantes, um tanto quanto jazzys, e ajusta no disco como uma passagem. “Diablo” trabalha bem com a ideia de colagens, mudanças de formas e estruturas. A música vai se desenvolvendo e apresentando outras camadas, outras possibilidades, começando com agudos, passando a um reggaeton e por vocalizações próprias do flamenco, e voltando à uma percussão dançante, com synths, ruídos e momentos em que a faixa desacelera, fora os microsampleamentos da voz dela encaixando em vários desses tempos. Já em “Delirio de grandeza” o número é a tradição flamenca em estilo emocionante, com a voz de Rosalía tomando conta de tudo, não apenas pelo alcance, mas pela beleza aveludada que produz. Lembrando as clássicas canções românticas amores perdidos, a melodia nostálgica é também uma espécie de bolero, com texturas originais que dão um ar mais moderno.
É instantâneo para um brasileiro reconhecer os ecos das escolas de samba em “CUuuuute”, que parece transformar o samba num batidão com graves fortes. Eventualmente, esses momentos trocam de posição com a voz de Rosalía, o que deixa transparecer que as músicas foram feitas cheias de detalhes, cuidado e estruturações mais complexas, com espaço para vários tipos de performances em cada faixa. “La Combi Versace”, com Tokischa, tem um maior uso do autotune, mesclado com chocalhos e ambientações electro mais pesadas/darks. Reggaeton de coros, flows de rap e recortes de efeitos, essa é música também usa tendências que podem ser observadas no funk, como o “engasgado” das palavras, por exemplo, e o ritmo da bachata. Fechando o disco, “Sakura” mostra Rosalía como uma voz vinda das profundezas, hipnotizando, encantando. Ela é uma artista completa: não apenas tem criatividade, talento para unir referências multidiversas em seu trabalho – é também uma das cantoras populares com a voz mais preparada do mercado musical.
“G3 N15” e “Como um G” estão entre as canções menos significativas do disco, não por serem ruins, mas por apresentarem pouco que chama atenção em relação às outras. São faixas bonitas, mas que acabam passado “batido” dentro da mistura impactante e agressiva que é Motomami.
Temos flamenco, o uso de castanholas e cantos em coro, violões que remetem a celebrações ritualísticas, o reggaeton pop em Candy, o R&B de Frank Ocean e Kanye West em Hentai, referências ao rap em Saoko, La Combi Versace e outras, e mesmo ao bolero, ao samba, ao funk em “Motomami”. Nada disso foi copiado, mas inspirado, adaptado, recortado e colado em formas diferentes, com experimentações e autonomia. Rosalía cumpre seu objetivo de trazer transformação, vida e movimentação ao pop, um gênero que hoje ganha bastante com variações como o hyperpop e o pop-rap, mas que também perde quando é reproduzido em estruturações idênticas e replicadas em álbuns e mais álbuns, virando pastiche. Seu trabalho ganha novos ares e permite caminhos diferenciados na escuta, formando pares de músicas, podendo ir do começo para o fim ou do fim para o começo. É um caminho aberto, uma experimentação em que há o melhor do clássico e do contemporâneo e muito swaggy (“fuck el estilo”, ela lembra).
Rosalía
MOTOMAMI
Columbia Records • 42 mins.
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Ivana Fontes é cantora/compositora, poeta e jornalista, nascida em 1997, em Aracaju/SE. Já fez participações no álbum Antes Aqui Era Tudo Mato, da banda Pacamã, e nos discos Fitas P/ O Terceiro Filme e Nocaute, da banda Cães de Prata. Hoje trabalha no lançamento de singles, escreve para a página You! Me! Dancing!, de jornalismo musical, e edita a Acidente.
✦ acidente / poesia
três inéditos
André Santa Rosa
alguma coisa sobre aviões
é a noite escura, o frio metálico
largas avenidas vistas do alto
a textura do relevo:
todas partes do seu corpo que
já não mais me recordo
esqueça os erros geográficos
não são eles que nos separam
aqueles dois quartos vazios
retornou pela última vez
àquele quarto vazio
olhou de novo
aquelas duas
janelas trincadas
a vida é toda
assim estilhaçada
março 21, sp
a partir de leonard cohen
eu estava andando pela cidade de são paulo e bati contra um homem que estava a minha frente. senti uma placa de papelão amarrada nas suas costas. e quando iluminada pela luz do poste, eu pude lê-la, e ela dizia:"Por favor, não me transpasse – Eu sou cego, mas vocês podem ver – Eu sou totalmente cego
– Por favor, não me transpasse".
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André Santa Rosa é poeta, jornalista cultural e crítico, nascido em 1999, em Maceió/AL. Como escritor, publicou o plaquete de poemas visão noturna para astronautas (2021), pela & legal edições, e Retratos de ruínas & outros fantasmas comuns, pela editora Urutau. Atualmente, escreve para o jornal literário Suplemento Pernambuco (com passagens por publicações como Revista Propágulo e Diário de Pernambuco) e publica poesia em diversas revistas e zines.
✦ acidente / resenha
FANTASMAS DA MINHA VIDA — Mark Fisher
Wibsson Ribeiro
Embora construído a partir de um material escrito ao longo de décadas, com um conjunto de textos que envolve postagens do blog K-Punk, entrevistas feitas com artistas como Burial e Caretaker, resenhas de discos, artigos acadêmicos e ensaios, é impressionante a unidade encontrada no livro Fantasmas da minha vida, de Mark Fisher, recentemente lançado no Brasil pela editora Autonomia Literária, que já havia publicado o excelente Realismo capitalista.
Publicado originalmente em 2013 e dividido em quatro longas partes, o heterogêneo material coletado forma um livro coeso principalmente por ser um testemunho das investigações de longa data de Fisher, por uma obstinação em olhar com muita atenção para traços da cultura pop e da cultura de massas que pareceriam efêmeros. Fisher parece, a cada novo capítulo, repetir obsessivamente as mesmas perguntas, ou levantar os mesmos problemas, isso com profundo respeito pela singularidade de cada objeto cultural que analisa. Ele era talvez mais do que um teórico no sentido acadêmico, mas um escritor, um crítico muito preocupado com o estilo em que apresentaria suas ideias. Isso faz com que todos os textos obedeçam à uma lógica, a um fio de conectividade que se faz perceber melhor quando lemos todas essas intervenções e reflexões em conjunto.
A dialética de Fisher se expressa antes de tudo em um estilo, uma forma de escrita na qual vemos ecos de Marx, Zizek, Adorno e outros autores, inclusive nas metáforas que utiliza. Tricky, por exemplo, é visto pelo escritor, quando da sua aparição no festival Glastonbury, como um convidado do show da superstar Beyoncé, como um “gárgula glamouroso no edifício do pop do século XXI”. A música do mesmo Tricky é definida como espectral, o mesmo adjetivo usado para caracterizar a música de Burial — sem contar com o fato de que, a começar pelo título, este é um livro recheado de espectros, fantasmas, anjos, aparições, possessões demoníacas e uma série de outras imagens que não são só uma prova do quanto Fisher estava imerso em uma estética gótica, mas também de como seu estilo pessoal buscava se conectar a uma ideia de saída de si, de perda do controle e de abertura para o que é infamiliar, aberrante e esquisito dentro da cultura pop. A prova maior disso é o conceito de Hauntology, traduzido de forma muito feliz por Guilherme Ziggy como “Assombrologia”, um conceito que tem origem em Derrida mas que nos escritos de Fisher mistura-se a reflexões de Ernst Bloch, Jameson e outros para fazer parte de uma marca de escrita particular sobre o mundo capitalista.
Por mais que o estilo de Fisher tenha muito de confessional e muitas das análises partam de impressões e ideias pessoais, o que vemos a cada ensaio é o “eu” sendo usado como ponto de partida para a dissolução em objetos da cultura. É como se o antídoto de Fisher para o narcisismo fosse a confusão entre a voz que diz “eu” e o mundo, a dissolução na música, nos sons, nos filmes, nas memórias das séries televisivas, no barulho da cidade. A Londres que o autor pinta em seu livro, e poderíamos arriscar que o grande tema do livro Fantasmas da minha vida é a Inglaterra e o que aconteceu com o país e sua capital depois dos anos de neoliberalismo da era Thatcher e Blair, é uma Londres em ruínas, melancólica, mas também onde é possível buscar ainda traços de esperança e espectros do que merece ser redimido do passado misturados a pequenos lampejos do futuro. A crítica de Fisher quer salvar do eterno presente capitalista aquilo que no passado apontava para um mundo diferente, ao mesmo tempo em que busca ver no que nasce as sementes de um outro mundo. O livro, portanto, enfileira teses sobre a derrota da classe operária britânica, e paralelamente reavalia a história dos anos 1990, propondo que enxerguemos a utopia que existia no hardcore continuum e na cultura de música eletrônica que florescia na década, propondo que valorizemos mais o Jungle e a música de Tricky, e esqueçamos das demonstrações de masculinidade envolvidas na rixa entre Blur e Oasis.
Essa Londres que Mark Fisher propõe deixa-se afetar por preocupações que vão além de uma cultura branca e heteronormativa. O filme Tinker Tailor Soldier Spy, remake de uma série de sucesso da BBC e adaptação de um romance de John Le Carré, é criticada de um ponto de vista do qual se aponta o quanto o personagem de George Smiley, vivido na adaptação de 2011 pelo ator Gary Oldman, tem seus traços queer e mais interessantes apagados em uma versão asséptica, para ficarmos em um exemplo. A presença de Paul Gilroy, constantemente lembrado por Fisher por conta de sua obra sobre a melancolia pós-colonial, funciona como uma nota de fundo que atesta o interesse de Fisher por uma Londres de ritmos afro-caribenhos, uma Londres negra e imigrante muito diferente da que é pintada pela cultura mainstream do país.
Em linhas gerais, o termo assombrologia, bem como todo o livro, está a serviço de um combate ao teor melancólico e nostálgico que infesta o mundo pop, que pode ser sentido nas músicas de Drake, James Blake e Kanye West, uma infernal reprodução do mesmo que parece sufocar tudo aquilo que ousa ser diferente. Em meio a essa repetição, Fisher busca o que ainda não nasceu, o que poderia ter sido, os futuros possíveis abortados, para sair da condição em que nos encontramos. Vemos o tempo todo no livro relatos que dão testemunho de uma regressão na cultura popular britânica: o sumiço da cultura modernista, a decadência da programação da BBC, que outrora exibira programas e séries tão instigantes, o enfraquecimento da cena musical londrina. Mas essa regressão é constatada não para se afundar na melancolia, mas para ser combatida e para exercitar um olhar ainda mais atento àquilo que merece ser salvo e resgatado da opressão do eterno presente neoliberal.
É estranho como ao relermos o livro com atenção, uma obra que lida com questões como depressão e suicídio de forma tão frontal, possamos perceber notas tão fortes de otimismo que pareceriam, à primeira vista, totalmente apagadas. É como se Fisher precisasse atravessar a melancolia, a tristeza e a derrota para encontrar coisas dignas de serem amadas. A forma encantada como ele fala de artistas como Burial ou Little Axe poderiam parecer ingenuidade de resenhista, mas em uma situação dramática como é a da cultura no começo do século XXI, elas ganham contornos de esperança e vontade de seguir em frente. O amor que o livro encarna por Londres e pela Inglaterra às vezes até exagera o tom, como na resenha do filme Patience (After Sebald) - diálogo com o livro Anéis de Saturno, do autor alemão, que é condenado por Fisher pelo fato de não fazer justiça às paisagens inglesas que o livro aparentemente pretendia narrar. É uma escorregada de Fisher, que aqui se equivoca diante de uma obra-prima, o que simultaneamente atesta que a preocupação central de Fisher, e isso não é demérito, é com a Inglaterra e seus destinos. A hipótese por exemplo de que a decadência da cultura pop se explica em parte pelo aumento dos aluguéis em Londres, motivo para que muitos jovens desistam de montar bandas ou tocar seus projetos, também é ilustrativa desse amor e de uma visão marxista de mundo.
Mark Fisher
Fantasmas da minha vida: escritos sobre depressão, assombrologia e futuros perdidos.
Trad. Guilherme Ziggy
Autonomia Literária • 288 pp. • R$ 64,00
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Wibsson Ribeiro tem 33 anos e é professor de história e doutorando no programa de Teoria e História Literária da Unicamp. Escreve também para a página Deserto Vermelho.
✦ acidente / fotografia
Casas entre Valparaíso e Santiago
Leonardo Amorim
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Leonardo Amorim é diretor, roteirista e montador pelo selo de produção audiovisual Doce Fantasma. Realizador dos filmes Porno (2016) e A Noite Estava Fria (2017), prepara agora o lançamento de Queima Minha Pele.
✦ acidente / ficção
SANHAÇU — um fragmento
Mateus Magalhães
Sonhei com seu rosto esticado entre dois girassóis. Nele, suas imperfeições estavam destacadas e, num primeiro momento, posso ter sentido certa hesitação. Digo hesitação porque sempre fico meio gelado quanto te vejo. E digo que posso ter sentido porque eu nunca lembro direito dos meus sonhos. Acordar em Maceió nunca é fácil, mas quando era ao seu lado era muito melhor. Quase sempre na primeira respirada, já no abrir das janelas, chega logo um gosto de podre. Às vezes me sinto mal ao falar assim de uma cidade com tantas peculiaridades, porque é verdade que Maceió, apesar de exalar um poderoso ki fascista nos seus becos escurecidos, especialmente quando nos aproximamos desatentos dos bairros da orla marítima, pode exibir com pompa o título de cidade mais informal do planeta. Essa é minha opinião, lógico: e é a opinião de alguém que nunca viajou pra porra de lugar nenhum, como você bem sabe. Essa informalidade nos traz algumas vantagens, mas, por favor, não me peça pra continuar nesse assunto, ou então o título do livro precisará ser outro. Neste livro, os protagonistas somos eu e você. Você, eu e tudo o que nós dois sentimos enquanto você definhava naquele apartamento. Os sanhaçus-cinzentos sempre cantavam à nossa varanda para encerrar as noites insones. E para costurá-las a manhãs difíceis. O livro é sobre as coisas mais terríveis que vivemos, aquelas impossíveis de desenvolver em texto. Certas coisas são impossíveis de falar, porque infelizmente a gente morre e não conhece todas as palavras da língua portuguesa. E, nessa brincadeira, arrastamos muitos segredos para a cova. No fim de tudo, quando pedimos as contas, somos só nós e a inconsciência, sobre um leito de hospital frio, com mil drogas a esterilizar nossa partida. Ou pior: agonizando por aí, as entranhas todas espalhadas sobre o asfalto de qualquer uma das sei lá quantas milhões de cidades desse mundo. Atropelado por um ônibus, afogado com a cara numa sopa ou esmagado por um piano na Avenida Jatiúca, vai ser só você, cercada pelos seus restos, enquanto o seu cérebro te afoga em endorfina. Desconfio de que ainda não há palavras para tudo na língua portuguesa, mas há uma para falar sobre você: lembrança. De um dia pro outro, num estalo, pode ser que já não estejamos mais aqui. E, a partir desse dia, vai ser assim para sempre. E foi assim com você. Na infância, eu era obcecado por futebol e me recordo desse que foi um dos dias mais tristes da minha vida até hoje: o dia em que percebi que não importava o afinco da pesquisa, eu jamais conseguiria acompanhar todos os jogos de futebol e ter à mão as estatísticas de todas as partidas que aconteciam nas minhas ligas favoritas. Infelizmente a gente morre e não sabe quantos gols o Eto’o fez pelo Antalyaspor. Quando se é criança, a percepção do mundo tende a priorizar certas coisas. E, por muito tempo, na minha infância só houve você. Você e o seu perfume doce. Naquele fim de tarde em Jacaré dos Homens, quando você foi enterrada ao lado dos nossos antepassados, os sanhaçus-cinzentos dançaram no céu alaranjado, sob a sombra daquela árvore. Eles dançaram e cantaram em respeito à sua partida, mãe.
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Mateus Magalhães é poeta, jornalista, compositor e frontman da banda Azul Azul. Como escritor, publicou os livros Quem Tabelar Com Toni Ganha um Fusca (2015) e Malu e a Bagaceira (2017), ambos pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos. Atualmente, prepara o lançamento de A Barca do Sol, o segundo disco do seu projeto solo Mateus Magalhães Trio, e Sanhaçu, seu primeiro romance.
✦ acidente / coleta
giro #1
Mateus Borges
Essa seleção de álbuns do primeiro trimestre de 2022 percorre uma linha angular entre as performances-no-calor-do-momento e os planos de ataque mais demorados, aqueles com espaço para serem feitos e refeitos sem demora. Se é possível visualizar dentro do quase-individual da guitarrinha gemendo no Say Laura a mesma faísca do coletivo que faz calor e treme nas vinte faixas do Dragon New Warm Mountain I Believe in You, também é possível visualizar essa exuberância da performance nas bases que parecem mais informadas por certo decurso, como no Alma Braba ou no homônimo do Fernando Catatau.
Que a meta aqui seja de tomar o timbre como um todo não parece um acidente. Composição é somente uma ideia complementar aos picos e declives do registro, da coisa-registro, ainda que não seja uma ideia necessariamente secundária. Exumar algo requer lugar e corpo e, à frequência certa, tudo é possível. O plano que inventa um momento ainda é, apesar de tudo, um improviso — seja na vocação arqueográfica de compilações que resgatam os processos de um momento específico no tempo e no espaço, seja no artista como um hitmaker para o qual o álbum é uma consideração para lá de posterior.
O primeiro Giro da Acidente é um apanhado dessas e de outras.
Say Laura – Eric Chenaux (jazz/guitarra/improviso/vocal)
i85mixx21-22 – Material Girl (hip-hop/colagem)
Strawberry – Caroline Loveglow (shoegaze/dream pop)
Alma Braba – Crizin da Z.O. (funk/industrial/DnB)
As Loud as Possible – Incapacitants (Reedição) (noise/industrial)
Otona Genso – Asagaya Romantics (J-pop)
8 Hits! – Raquel Dimantas (pop)
Bad Mode – Hikaru Utada (pop/r&b)
A Blues – Rat Heart Ensemble (eletrônico)
Fernando Catatau – Fernando Catatau (rock/brega/synthpop)
BAMANAN – Rokia Koné e Jacknife Lee (eletrônica pan-africana)
Mitochondria – Akira Sakata e Takeo Moriyama (free jazz)
V4 Visions: Of Love & Androids (Compilação) (house/jungle/new jack swing)
LIA (pt.1) – Lia Clark (funk/pop)
Mmaso – Ecko Bazz (hip-hop/grime)
Dragon New Warm Mountain I Believe in You – Big Thief (folk rock)
What Does It Mean To Be American – Robert Stillman (jazz)
Interior Monologues – Asha Sheshadri (ambient/spoken word)
Mitt Stora Nu – Treasury of Puppies (guitarra/voz)
Study of the Invisible – Vanessa Wagner (piano solo)
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Mateus Borges é editor da Acidente e lançou os discos Fitas P/ O Terceiro Filme (2020) e Nocaute (2021), ambos sob o nome Cães de Prata.