Acidente #3
Resenhas de Weyes Blood, Lambchop e Bjork / "Primeiro Gol", de Mateus Magalhães / Perguntas fora de tempo / the Mountain Goats: objetos sem sujeitos, por Richard O. Brien / + poemas inéditos e giro
Leitura realizada por Ana Thereza Távora do poema “Telescópio”, de Louise Glück, em tradução de Heloisa Jahn. Ana Thereza Távora é atriz em formação e advogada.
Acidente é uma publicação trimestral editada por Ivana Fontes e Mateus Borges.
✦ acidente / resenha
Califórnia em chamas: a busca pelo amor de Weyes Blood à Joni Mitchell
Marcela Luna
Com uma voz intimista acompanhada de um piano, Natalie Mering, ou Weyes Blood, inicia o álbum And in the Darkness, Hearts Aglow com a imagem da solidão de uma festa e um lamento: “Oh, it's been so long since I felt really known”. It’s Not Just Me, It’s Everybody em poucos versos se expande, demarcando a atmosfera das músicas seguintes que compõem o quinto e mais novo disco da artista. Pop, nostálgico e ainda assim repleto de nuances, suas músicas dão continuidade ao seu projeto anterior, Titanic Rising (2019), que iniciou uma trilogia ainda não finalizada.
Na festa, sua desconexão dos outros e de si mesma é logo percebida como fragmento de algo maior, como quem parte de um episódio individual para narrar uma experiência que muitas vezes é coletiva. Ao cantar It’s not just me, it’s everybody acompanhada de uma harpa ao fundo, a música floresce em um esplendor orquestrado pela repetição do refrão, que soa como um acalanto para o ouvinte, lembrando-o desse coração vivo e iluminado que suplanta o corpo imerso na escuridão que figura a capa do disco.
Tanto o florescer quanto o coração são imagens que parecem se mesclar ainda na capa do álbum, onde o órgão muito mais se assemelha a uma rosa aprisionada no peito da Natalie. Esse coração-flor, aceso e delicado, no interior de alguém que precisa ser duro para enfrentar os percalços da vida, parece querer se libertar, se mostrar para o mundo. Numa música de cerca de 6 minutos com uma letra sucinta, mas arrebatadora, God Turn Me Into a Flower roga por esta vulnerabilidade, pede permissão para vivê-la.
Para exaltar a letra, a música se utiliza da mais melancólica e suave melodia. As diversas camadas sonoras casam com as palavras e conferem à música um tom celestial, como se fosse possível ouvir, ver e até mesmo sentir o paraíso. O trecho: “It always takes me, it's such a curse to be so hard/ You shatter easily and can't pick up all those shards/ It's the curse of losing yourself when the mirror takes you too far/ Oh, God, turn me into a flower” se mistura com o som de aves, os arpejos do sintetizador e um coral, que dá à faixa um caráter onírico e o posto de música mais diversa em texturas do álbum.
Admitidamente inspirada no mito de Narciso, a música também fala de uma auto-obsessão que leva à morte de si, submerso no próprio reflexo. O fim dá lugar ao renascimento do eu, agora autêntico, enquanto uma flor. Figura tradicionalmente bela, receptiva e sensível.
Esse anseio por um encontro com o outro e com si mesma que permeia o álbum, acompanhado de uma voz mais madura da Natalie, nos leva à sonoridade e à poética de Joni Mitchell, por exemplo, ao misturar realismo e romance, num campo de exploração da canção enquanto narração do eu. O coração não contido, honesto e tenaz é comum a ambas. Esta figura aparece para Joni em California quando, ao cantar sobre suas viagens permeadas pelo sentimento de solidão, ela se questiona se o seu desejo se concretizará: o seu amante a aceitar como verdadeiramente é.
Ainda no álbum Blue, Joni revela mais uma vez seu lado romântico que está em busca de um amor infindável, como revelam ainda os primeiros versos de “All I Want”: “I am on a lonely road and I am traveling/Looking for something to set me free.”. Porém, logo é possível perceber que o amor que ela encontrou não a dará tudo que deseja: “Oh, the jealousy, the greed it is unraveling/ It's the unraveling/ And it undoes all the joy that could be”.
Weyes Blood, de maneira similar, diz em sua música Hearts Aglow: “Cause I've been waiting for my life to begin/ For someone to light up my heart again”, mas assim como em Joni, a descrença, a dúvida e o medo logo aparecem: “Oh, hold me tight/ I'm scared I might fall/ Just like the water below/ You don't get to know if your love has all/ It's gonna take”
Assim, ambas as artistas exploram, cada uma à sua maneira, a solidão e o desejo de uma jovem. Ao combinar estes sentimentos a uma festa, a tentativa de concretizar a conexão que tanto buscam é suscitada. Entretanto, as pessoas que as cercam, apesar de preencherem o espaço físico, parecem não dar fim aos seus isolamentos, pelo contrário, por vezes, potencializam-os. “Oh, it gets so lonely/ When you're walking/ And the streets are full of strangers/ All the news of home you read/ Just gives you the blues/ So I bought me a ticket/ I got on a plane to Spain/ Went to a party down a red dirt road”, canta a artista dos anos 1970.
Após mais de 50 anos do lançamento do disco Blue, maior obra de Joni Mitchell, tantas artistas contemporâneas escrevem, criam e cantam sobre as mesmas imagens, imagens estas que foram concebidas antes mesmo de Joni Mitchell. Weyes Blood é uma delas, e faz isso de maneira primorosa. A continuidade dessas figuras, que se esmiúçam e que permanecem repercutindo, talvez fale de uma narrativa ainda muito vivenciada pelas mulheres, algo similar com o que pensa bell hooks em Tudo sobre o amor: novas perspectivas.
Tem a ver também com a busca de um amor nunca concedido de maneira incondicional, ou até mesmo de um amor nunca concedido. Igualmente se relaciona com uma busca que as ensinaram que chegaria ao fim, mas que para muitas ainda parece infindável. Uma conexão prometida, uma troca esperada, um anseio que cessaria com a chegada do amor libertador. Que, para Joni, se relaciona mais vezes com o amor romântico, com uma relação a dois, do que para Weyes.
Weyes Blood, então, amplia esse olhar, o que se torna perceptível por meio da presença quase que equivalente de “we” e “I” nas letras das músicas: “We don’t have time anymore to be afraid”, em Children of the Empire, “We don't know where our love has gone”, em Hearts Aglow, e “We are more than our disguises/We are more than just the pain” em Twin Flame, perto do final do álbum.
Em It’s Not Just Me, It’s Everybody, ela enxerga que é o seu próprio isolamento a resposta para o que procura. É a sua própria condição que a conecta com o outro. Paradoxalmente, a solidão e a invisibilidade que todos pensam que somente os acomete é o que conecta a todos. Talvez cada um se sinta tão sozinho e invisível quanto ela. E, se assim for, eles podem pelo menos estar juntos na solidão. E In the Darkness, Hearts Aglow confronta os desafios do presente da maneira mais contestadora: com encanto e um coração inflexivelmente honesto, mas sempre sensível.
Seu mote central — a busca por uma conexão, uma ligação entre os humanos num mundo cada vez mais fragmentado — é extremamente familiar para todos nós. Com essa premissa banal, Natalie faz algo similar a Joni Mitchell: olha para dentro e para fora simultaneamente e acredita que suas perspectivas individuais, apresentadas de forma vívida e sincera, podem revelar verdades que se estendem muito além de si mesmas. In the Darkness, Hearts Aglow pode às vezes se endereçar ao mundo inteiro, mas começa com uma mulher sozinha em uma festa.
Weyes Blood
And in the Darkness, Hearts Aglow
Sub Pop • 46 mins.
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Marcela Luna é estudante e pesquisadora bolsista pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e nascida em Recife/PE. De 2016 a 2020, foi uma das participantes do Clube do Livro do CAp. Tem interesse em literatura, música, cinema, direitos humanos e questões socioambientais.
✦ acidente / entrevista
perguntas fora de tempo #2
Pinçamos perguntas de entrevistas famosas que gostamos e enviamos para alguns artistas sem qualquer menção à certidão de nascimento. No escuro, queríamos ver o que acontece com as respostas sobre processos artísticos quando se deslocam as áreas, os dias e as pessoas, e também quais seriam os choques mais evidentes.
P: Como você descobriu sua própria voz? Isso aconteceu gradualmente? (Entrevista com Woody Allen para o Paris Review em 1985.)
R: Eu gostei que você tenha me perguntado isso. Na verdade, eu nunca descobri isso, uma voz. Talvez você tenha descoberto por mim e, por isso, agradeço. Algum dia eu te sirvo um chá e você me conta que voz é essa, tudo bem? Isso de ter uma voz é algo novo pra mim porque o que sempre tive foi isso: um corpo. Ossos de cimento, vigas pesadas, é isso que eu venho descobrindo. Mais do que uma voz, eu carrego um corpo. Essa tem sido a minha maior descoberta, o meu maior espanto. Como você sabe, eu moro sozinha. Apenas eu e uma gata. Ela sim tem uma voz, estridente, diga-se de passagem. Às vezes, passo dias sem emitir um som sequer. Nunca me acostumei a essa coisa de falar sozinha, então eu escrevo. Talvez quem me lê, como você, eu suponho, tenha escutado alguma coisa que eu não consigo. Descobrir um corpo dá trabalho, você me entende? Deixo que a voz seja uma descoberta de quem lê.
Karen Pimentel é Auditora Federal de Finanças e Controle, mestranda na Universidade de São Paulo (USP), poeta e autora de “Solidões” (2018).
P: Estamos quase chegando e eu pergunto cretinamente: - Por que você só usa gravata borboleta? (Pedro Bloch entrevista Guimarães Rosa. Publicado na revista Manchete, nº 580, de 15/06/1963)
R: Gosto da forma como as pessoas me olham quando vou ao mercadinho do Eustáquio Gomes de gravata borboleta, sandália havaianas, short e camisa do CSA. Me sinto a personagem da canção do Jorge Ben, imagino que alguém esteja vendo os detalhes da gravata, “Isso não é só uma gravata / Essa gravata é o relatório / De harmonia de coisas belas / É um jardim suspenso / Dependurado no pescoço /De um homem simpático e feliz”.
Richard Plácido é escritor, autor dos livros “Entre ratos & outras máquinas orgânicas” (IOGR, 2016) e “A festa do rouxinol” (Loitxa Lab, 2021), pesquisador e organizador da Novo Jardim Livraria e Café, em Maceió.
P: Que tal trabalhar como músico? Você foi baixista profissional, e até fez uma curta passagem, em meados dos anos 80, tocando na Shamu's Blues Band, no SeaWorld de San Diego. A música influenciou seu estilo cômico? (Mike Sacks em entrevista com o humorista Mike Judge. The New Yorker, 7/9/2022)
R: Ah, com certeza. Também fui baixista na banda Fish Stories, com João Herberth, Ivan Oliveira e Artur Oliveira (Rest in Power), no Studio Wave do Pinheiro. Inclusive o baixo, pelo seu apelo ao sensual, ao animalesco, pela vibração (!) que provoca, tem um potencial cômico subaproveitado. Vejam o programa do Seinfeld, com aquels slaps inconfundíveis!
Ari Denisson é escritor e autor dos livros “baroque.doc” (2011) e “Contos Periféricos” (2016), além de professor em Maceió (AL).
✦ acidente / ensaio
the Mountain Goats: objetos sem sujeitos
Richard O. Brien, traduzido por Mateus Borges
Durante uma entrevista para o ciclo promocional do disco The Life of The World to Come, John Darnielle foi perguntado quais eram as suas influências literárias. Ele evitou apontar semelhanças diretas entre a própria escrita e a de figuras gigantes que já havia citado em outros momentos — Joan Didion, Faulkner, Aeschylus —, mas uma comparação em particular saltou aos olhos. Ele comparou os seus trabalhos aos de “um Robbe-Grillet, só que muito mais emo”.
Alain Robbe-Grillet foi um romancista e cineasta francês que se destacou no movimento nouveau roman dos anos 50 e 60. Uma das características marcantes dos seus romances é o estilo seco que privilegia objetos em detrimento à trama e à psicologia dos personagens. No lugar de examinar as motivações das pessoas ou a subjetividade emocional das suas respostas ao mundo, a prosa de Robbe-Grillet nos apresenta os objetos em suas essências — as suas dimensões geométricas, as suas arestas pontiagudas, as suas presenças irredutíveis e indiferentes à vida humana.
Ele também é conhecido por narrativas repetitivas e cíclicas — cenas se repetem de vários ângulos, por vários planos da realidade, até não haver mais como recapturar o que aconteceu ou em qual ordem, e até essas questões de sequenciação se tornarem elas mesmas inúteis. É um mundo de padrões mecânicos rompidos apenas pela violência implacável. O romance Le Voyeur mostra um vendedor de relógios durante uma viagem circular por uma ilha isolada. Ele elabora metodicamente quanto tempo levará para que passe de casa em casa de bicicleta. Quanto tempo levará para fazer cada uma das vendas. Ele prepara a maleta na mesa para mostrar todos os modelos que estão à venda. E ele pensa sobre o corpo de uma menina jovem, abusada sexualmente e jogada de um penhasco rumo à morte. Esta é uma passagem representativa, a partir da tradução do Richard Howard:
"Na maré baixa os restos desses caranguejos amarravam a lama pura em frente ao atracadouro. Entre as pedras lisas com jubas de sargaço podre, na quase inclinada e enegrecida superfície, na qual brilhavam aqui e ali uma latinha de alumínio que ainda não havia enferrujado, uma lasca de louça pintada com flores pequenas, um escumador esmaltado azul quase intacto, suas arqueadas e espinhosas conchas podiam ser notadas próximas às longas e lisas conchas dos caranguejos comuns."
Esses objetos são colocados ante aos nossos olhos sem comentário, sem ressonância emocional inerente — as suas existências são como um desafio; eles possuem o que Darnielle, em “Baboon”, chamará de “poder puro, deposto de significado”. E as músicas do Mountain Goats são cheias de passagens descritivas dessa natureza; de objetos que se acumulam, cercando os personagens de Darnielle, sem pedir a permissão deles e muito menos a nossa. Pense nos primeiros versos de “Broom People”, por exemplo:
Um Hudson de 36 na garagem
Todo tipo de tralha no quartinho dos fundos
Pratos na pia da cozinha
Fio novo para um esfregão velho
Ou nesses daqui, de “Letter From Belgium”:
Susan e seu caderno
Caricaturas do Lon Chaney
Plantas para domos geodésicos
Receitas de bolo
Or então nesses, de “All-Rooms Cable A/C Free Coffee”, no disco “Martial Arts Weekend”, do Extra Glenns:
Trovão, relâmpago, chuva quente,
Cheiro doce de grão podre
Manjericão-santo, carro-de-vênus
Corvos batendo na vidraça
Não estou sugerindo que todas, ou nem mesmo que a maioria, das canções do Mountain Goats sejam feitas nesse esquema, mas é um procedimento que se repete o suficiente para merecer algum tipo de atenção especial. O que é marcante sobre essas listas de substantivos é o quão desconectados eles se mostram— livres de artigos, definidos ou indefinidos, ou dêiticos para marca-los como “o”, “a”, “alguns”, “estes” ou “aqueles”. Parte do que confere às canções de Darnielle essa ideia de concisão é a elisão — essa marca intensa de audição é gerada pelo que as letras não expressam, até mesmo no nível básico da gramática. Um exercício besta que serve para ilustrar o que o Mountain Goats não faz:
Susan e seu caderno
[No qual havia]
Caricaturas do Lon Chaney
[Com]
Plantas para domos geodésicos
[E]
Receitas de bolo
Claro, John Darnielle não impede que você junte os pontos e faça conexões. Esse é o jogo narrativo, afinal de contas — um fato do qual Darnielle, que em outra entrevista se declarou como autor "não de um, mas de dois tomos" sobre a necessidade humana por narrativas, é conhecedor notório.
Esse é uma divergência importante com Robbe-Grillet — sem entrar em aspectos muito específicos, boa parte do que o autor francês faz em sua escrita é obscurecer os detalhes até que eles obliterem a ideia de desenvolvimento cronológico da narrativa; tudo acontece ao mesmo tempo, como uma pintura cubista (descrição de outra pessoa, diga-se de passagem), e é a tarefa do leitor processar o trabalho em tela enquanto ele se cria, mais do que de fato procurar por uma estrutura narrativa pré-existente que se possa recriar como um detetive. De fato, fazê-lo seria um desserviço ao próprio texto.
Para John Darnielle, no entanto, é impossível parar de investigar o significado nas coisas ao nosso redor, ainda que elas próprias, isoladas, não possuam qualquer significado, e é impossível separar os eventos que a vida, ou a escrita, nos apresenta sem engajar com a busca furiosa por ordem narrativa. Ou em outras palavras: se há um macaco no porão, como ele chegou ali?
Talvez seja aqui que se justifique o “só que muito mais emo”. É difícil pensar em Darnielle como um cínico fotógrafo de objetos, porque suas canções também são repletas de humanos — pessoas tensas, quebradas, com as suas paixões e as suas obsessões e as suas fúrias. Uma canção do Mountain Goats nunca será apenas “formigas carpinteiras no aparador / moscas na tela”, porque sempre haverá alguém no meio disso, com medo de que será “tarde demais antes que saibamos / o que esses símbolos oblíquos significam” (“Palmcorder Yajna”). Formigas e moscas não significam nada além da falta de asseio de uma casa, embora Robbe-Grillet retorne, vez mais vez, ao tema de insetos e crustáceos, criaturas insignificantes que planam pelas beiras das cenas humanas até que uma bota as esmague. Mas o que é mais marcante, aqui, é o fadado e inescapável desejo por um fazer-de-sentido, pela necessidade de o falante externar aqueles eventos e objetos em uma ordem adequada.
O que não significa que Darnielle crie personagens saturados. Personagens, assim como tramas, são suprimidos no trabalho de Robbe-Grillet, e Darnielle também os aborda por uma técnica de supressão. Sim, as suas canções são repletas de “eus” e “vocês” — mas se atente aos verbos. Mais de uma vez Darnielle conjuga os verbos sem o sujeito. Supomos, como melhor prática, que a pessoa cantando é aquela que performa a ação, mas olhe para esse verso de “How to Embrace A Swamp Creature”:
Meet up with you in the kitchen
Where the air is hot and dry
Open up all the faucets
Be fruitful and multiply
O primeiro verso é, de certo, a ação do narrador. [Eu] encontro você na cozinha. Mas será ele também, e sozinho, que “abre todas as torneiras?” Ou eles fazem isso juntos – “abrimos todas as torneiras”? Ou seria então uma frase imperativa, do locutor ao seu interlocutor, que só assim resultaria no comando bíblico do próximo verso? E a quem esse comando se endereça – a ela, a ele mesmo ou a todos nós?
Este trecho parece simples na sua construção, mas o efeito literário é parecido:
Touch nothing move nothing stand still
Keep my ears open for cars
See how the people here live now
Hope they’re better at it than I was
O primeiro verso traz a mesma presença inclusiva e imperativa – coloca-nos no quarto com o narrador alienado, fazendo com que encaremos a mesma decisão de ação. O resto simplesmente omite o sujeito, sublinhando não com quem ele fala, mas sobre o que ele está falando e o que está fazendo – as suas ações. Ações vêm primeiro, a narrativa vem depois. Além de manter a canção breve e familiar, a ausência da primeira pessoa cria uma espécie de universalidade, ou, sendo mais pessimista, um rastro ainda mais opressor de alienação. Igual à elisão dos artigos em outros trechos, essa é a forma mais direta de apresentar essas ações. Mas para o ouvinte, essa ausência nos coloca dentro delas, fortalecendo o zoom out de um refrão ainda mais doloroso: “Eu já vivi aqui”. Nós estamos tão próximos aos verbos que quase nos enganamos pensando que eles eram sobre nós.
Essas são só algumas observações, e não dá para abraçar tudo em um ensaio desse tamanho; mas se buscamos uma genealogia literária para John Darnielle, ele mesmo nos forneceu uma pista inesperada. Quando Darnielle canta que “essa música é para as agulhas e algodões / que eu deixei na gaveta de cima”, talvez seja a esse romancista do avant-garde francês dos anos 50 a quem tenhamos que agradecer pelo esforço. Afinal de contas, alguém precisa proteger as suas coisas bonitinhas.
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Richard O. Brien é criador de Now Here We Are Thirty Years Later: A Memoir in Mountain Goats Songs e autor do livro de mesmo nome.
✦ acidente / resenha
O músculo da esperança
FOSSORA — Bjork
Ivana Fontes
Bjork muitas vezes soa para mim como um filme do Apichatpong ou do Akira Kurosawa; seus cenários na floresta e na cidade, sua solidão, seus acidentes divinos. Mas sobretudo porque é dotada daquela sensibilidade que pede para que se olhe – ou escute – uma outra vez, que se deixe levar por uma mão marítima misteriosa, que nos deixa reconhecer os peixes mais coloridos e os monstros mais violentos, às vezes encarnados em um só. Em seu primeiro disco, “Debut”, Bjork diz: “Come to me/ I’ll take care of you/Protect you”, com sua voz magnética, pedindo para não ter que dizer que ama seu interlocutor; isso “quebraria o charme”. Para quem aceita segui-la, sem vaidades, a experiência é diferente de qualquer outra artista popular. Entre morcegos se debatendo em cavernas e metrópoles com suas retroescavadeiras, Bjork canta uma fuga de lugares-comuns e cria canções cedendo uma parte do seu corpo para o imprevisível, fora e dentro de nós.
A complexidade das canções de Bjork não é novidade. Desde seu primeiro disco solo, depois de quatro álbuns com os Sugarcubes, a cantora já explorava rock, dance, techno, house, blues, jazz e até bossa nova, como quando canta “Like Someone in Love”, ainda em “Debut” (1993), que poderia ser facilmente interpretada por Tom Jobim.
Seu uso de cordas, sinos e harpas, que constroem um universo mágico e lendário, também já existia ali, de forma até um tanto quanto exagerada. Bjork sempre deixou clara a separação entre ela e sua obra, rejeitando a obsessão de fãs que a veneravam: “É humilhante”, disse ela numa entrevista para a MTV. E sua arte sempre girou em torno de invenções muito criativas e não convencionais: cenários, vestimentas, seres estranhos, espíritos animais e vegetais, etc – que de tão expressivas, são mais próximos de nós do que tantas outras imitações blasés e cinzentas da realidade.
A imaginação de Bjork para se inventar e explorar o mundo ao seu redor, como uma verdadeira caçadora incansável, pode ser vista com desconfiança, ou classificada como excentricidade para os mais céticos, mas nos ensina que a arte pode ser tanto “artificial’ quanto poderosa: é tudo ficção, e é nessa capacidade imaginativa que reside o que há de mais profundamente humano. Afinal, Bjork sempre quis se comunicar com outras pessoas, mas se a sua música era mais ‘palatável’ no início de sua carreira, depois foi progressivamente sendo mais desafiadora. No entanto, ela discorda: “o BPM, ou a quantidade de frio, ou a quantidade de experimental, ou a quantidade de açúcar pop, ou a quantidade de autorreflexão e momentos sérios — acho que na verdade tem sido o mesmo em todos os meus álbuns”, disse ao The Atlantic ainda este ano.
É nesse contexto que brota “Fossora” (2022), álbum lançado em setembro deste ano, depois dos lançamentos dos singles “Atopos”, “Ovule” e “Ancestress”. Ao escutá-lo de cabo a rabo, os destaques são as faixas do início, notadamente “Atopos”, “Ovule”, “Sorrowful Soil” e “Ancestress”, por seguirem uma combinação muito controlada entre momentos catárticos ou detalhistas, todos igualmente dramáticos.
“Fossora” consegue dar uma forma concreta ao experimentalismo e ao spoken word que Bjork tentou desenvolver anteriormente em “Utopia” (2017), unindo memórias tocantes, reflexões sobre a concepção e morte da vida — a qual os fungos, que proliferam com a morte, conhecem muito bem —, além de uma força enérgica e incontrolável capaz de purgar os mais poderosos demônios. Bjork decide “escavar” (“fossora” significa “escavadora”) lembranças depois de cinco anos na Islândia, onde nasceu, e o resultado é um disco encantador.
Referências femininas também estão muito presentes no disco, com a figura de um óvulo-cápsula em “Ovule”, o auto sacrifício muito ligado a um papel feminino em “Sorrowful Soil”, sua mãe em “Ancestress” e reflexões que evocam a relação de mãe e filhos em “Her Mother’s House”. A união de filosofias femininas e maternas com a concepção fúngica de transformações através da morte, bem como a imagem dos cogumelos como expansão psíquica, dão a “Fossora” peculiaridades que seus trabalhos anteriores não apresentaram.
Com uma orquestra dissonante e um batuque que lembra o reggaeton, Bjork começa “Fossora” entoando: “Are these not just excuses / to not connect?”, com “Atopos”. O ar é dançante, mas convive com a gravidade dos instrumentos de sopro e as notas parecem se encaixar desajeitadas: o resultado é uma força que vai se costurando até chegar no ritmo frenético ao final da faixa. Bjork começa seu álbum de forma bem-humorada e com bastante energia. “Hope is a muscle”, diz ela por último na música, enquanto parecemos entrar numa alucinação catártica e renovadora.
“Ovule” é a segunda faixa do disco, mais delicada. Nela, sentimos o tom declamatório do spoken word, já explorado mais intensamente em seus últimos discos. A faixa mantém uma batida constante com um synth principal charmoso, e fala sobre gravar os avatares próprios e da pessoa amada em um óvulo no “vazio vermelho-sangue escuro”, diante de impossibilidades reais. Bjork pensa saídas para se conectar com esse alguém, em um mundo que a tecnologia busca guardar e replicar as experiências humanas.
Em “Sorrowful Soil”, que explora mais os silêncios, os instrumentos entram junto das vozes em coral e lembram cantos religiosos. Mas ao invés de cantar para Deus, a lamentação é sobre um lugar feminino, dolorido. “This is emotional textile/ Self-sacrificial, self-sacrificial”, diz a letra. As vozes se embolam entre Bjork e o coral: “You di-di-di-di-did well”, eles dizem. Com sete minutos e uma abertura especial de violinos, sinos de catedral que vão acompanhando as notas e batidas orientais, “Ancestress” lembra a mãe de Bjork, que cantava para que ela dormisse e lutou com forças até os seus últimos momentos. A letra é especialmente comovente e capta a dificuldade que há nos filhos em se descolarem das mães: You see with your own eyes/ But hear with your mother's/There's fear of being absorbed/By the Other.
Bjork lamenta, ao longo da música, sobre como características de sua mãe, como sua rebeldia vibrante, desaparecem, e como ela sente o “perfume da separação durante séculos” após a sua despedida. O efeito tic-tac, do tempo passando, também aparece progressivamente, e sinos estridentes contrastam com synths graves de menor intensidade. Com mais espaços, o violino surge aqui e ali provando a doçura desse embalo temporal de apagamento/perduração.
Esse movimento entre catarse regada ao eletrônico e momentos mais íntimos de sopros cuidadosamente encaixados se segue ao longo do disco de forma complexa. Mas sem dúvidas, “Fossora” não deixa muito espaço para dualismos. “Victimhood” expõe seus drones pesados, com uma batida sorrateira, e mostra o lugar inóspito, violento e doloroso do auto sacrifício. “Allow” e “Fungal City” estão cheias de flautas e clarinetes saltitantes, sendo “Fungal City” um flerte também com o eletrônico. “Trölla-Gabba” já é mais tensa e sombria, com vozes que vão e vem dando o tom. “Free-fall” é contida, com um violino tenso e dramático. Cheia de emoção, Bjork canta: “I let myself freefall/Into your Arms/Into the shape of the love we created/Our emotional hammock”: definitivamente uma canção de amor. Aos dois minutos, a faixa ganha um ar mais curioso e atmosférico que segue ressoando.
“Fossora” dá o nome do disco e explora bem mais fortemente essas influências eletrônicas, com sons de máquinas ruidosas. Às vezes, você pode sentir que está assistindo a uma coreografia teatral de balé; em outros, numa rave maluca. Em “Her Mother’s House” somos arrastados com o oboé e a suavidade de Bjork e isadóra bjarkardóttir Barney, sua filha, que diz: “When a mother's house/ Has a room for each child/ It's only describing/The interior of her heart”.
A arquitetura da casa na qual Bjork nos convida a entrar é úmida, elétrica, sensível e apaixonante.
Bjork
Fossora
One Little Independent • 54 mins.
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Ivana Fontes é cantora/compositora, poeta e jornalista, nascida em 1997, em Aracaju/SE. Já fez participações no álbum Antes Aqui Era Tudo Mato, da banda Pacamã, e nos discos Fitas P/ O Terceiro Filme e Nocaute, da banda Cães de Prata. Hoje trabalha no lançamento de singles, escreve para a página You! Me! Dancing!, de jornalismo musical, e edita a Acidente.
✦ acidente / crônica
O primeiro gol
Mateus Magalhães
Ele veio impávido, depois de um cruzamento de voleio. O lance pareceu ser um milagre, descolado inesperadamente de uma bagunça generalizada na grande área. Como o joio, quando é separado do trigo. Poderíamos dizer que o lance, antes da sacada genial de Felix Torres, lembrava a segunda divisão do campeonato alagoano. É vero que a participação bizarra do goleiro catari, Al Sheeb, foi tão decisiva para o gol quanto a genialidade do zagueiro equatoriano. Tão decisiva quanto o faro de gol do experiente Enner Valencia.
Tudo teve origem na cobrança de falta de Estupinan, que, com a canhota, fez a bola bater asas muito perto da pequena área do time de vermelho. Dois jogadores do Equador, com muita sede, aproximavam-se do pote. Desesperados, como que carregando nas costas o peso de bilhões de dólares, ou talvez o de milhares de mortes, cinco jogadores do Catar também correram rumo à pelota, na tentativa de fazer o corte.
Àquela altura, ainda não sabiam que o esforço seria inútil. No caminho, haveria o vigor de Torres. E, logo depois, o inevitável gol de Valencia. Quem também não sabia que o esforço seria inútil era o pobre goleiro, Al Sheeb. Como se não bastassem cinco cataris cobrindo a jogada, o grandalhão também contou carreira, destrambelhado como todo bom perna de pau. Terminou, é claro, não encontrando a bola.
Encontrou apenas os corpos de Torres e de um de seus defensores, enquanto a bola seguia viva, à revelia da zaga catari. Ainda tentou, claramente desesperado, alcançá-la depois do choque. A bola, difícil como moça da cidade em festa do interior, limitou-se a quicar na sua frente, alheia ao seu esforço e, principalmente, ao seu notável desespero.
A bagaceira estava feita. E o gol, por sua vez, vazio. Al Sheeb ainda tentou voltar, caminhando de costas, em ritmo acelerado, para proteger a linha de cal. Mas todo mundo sabe, especialmente na natureza, que andar de costas é sinal de fraqueza. A zaga, ao ver o goleiro em disparada, pensou que estava tudo garantido. É claro que ele ia ficar com a redonda. Afinal, suas passadas largas pareciam exalar confiança.
Por isso, a zaga terminou dando mais espaço do que deveria. E, quando percebe a lambança feita pelo goleiro, já é tarde demais para evitar o inevitável. De repente, não mais que de repente, Torres se vê diante da oportunidade de sua vida. Olha pro lado, de mansinho, e percebe Enner Valencia no centro da área, marcado de maneira incipiente, mas tão incipiente que tenho até medo de dizer que ele estava sendo marcado.
A verdade é que ele estava livre, dominante como um Leonidas Iza, líder indígena do povo Kichwa Panzale, chamando de puto ao Guillermo Lasso, o infame presidente do Equador. Mas sobre Enner Valencia a gente fala daqui a pouco. Por enquanto, voltemos ao zagueiro Felix Torres, um defensor maroto, aventurando-se adiante das linhas inimigas. Um defensor que, diante da oportunidade de construir a jogada do primeiro gol da Copa do Mundo de 2022, demonstrou a destreza de um maestro一ou de um molequete lationamericano, que aprende, nos campos da várzea e da vida, a improvisar quando a situação aperta.
É verdade que a situação não estava apertada, mas Felix Torres, como um POWER RANGER, levantou voo e, por um momento, congelou a respiração dos presentes no estádio Al Bayt, em Al Khor, a cerca de 40 quilômetros de Doha, capital do Catar. Isso para não falar das milhões de pessoas que assistiram, do conforto de suas casas, um zagueiro, de voleio, fazer a bola ultrapassar o primeiro pau.
Enner Valencia, soberano, subiu mais que os zagueiros, que mal tentaram acompanhá-lo no lance. Marcaram a bola, os tristes defensores cataris, como se nunca tivessem feito escolinha de futebol na infância. Se tivessem feito, pelo menos aqui em Alagoas, teriam levado uma bela bronca de algum treinador barrigudo, por terem cometido um erro tão juvenil.
Torres estava impedido na jogada. E, por isso, este gol marcante, fruto de um passe tão emblemático, terminou sendo anulado. O primeiro gol oficial da Copa terminaria sendo marcado dali a alguns minutos, em cobrança de pênalti magistral, do mesmo Enner Valencia que enfiara a testa, com indômita bravura, no cruzamento de Torres. Mesmo feito com classe, este gol de pênalti não teve tanta graça quanto o gol anulado.
Por isso, para mim, o primeiro gol da Copa do Mundo de 2022 ficará sendo aquele, o primeiro, justamente anulado pelo árbitro italiano Daniele Orsato.
Embora Enner Valencia, o autor dos três gols da partida (contando com o anulado), tenha já os seus 33 anos, a maioria do time equatoriano é bem jovem. A média de idade dos convocados fica nos 26 anos e dois meses. Metade deles foi revelada, ou teve passagem relevante, pelo time do Independiente Del Valle, o algoz do São Paulo na final da última Copa Sul-Americana.
Isso não é mera coincidência. Doze anos atrás, na Grande Quito, o clube, que por duas vezes venceu a Sul-Americana depois disso, inaugurou um dos principais projetos de formação de atletas do Cone Sul. Ao todo, a equipe investiu cerca de 50 milhões de dólares para construir um complexo com centro de treinamento, estádio para dez mil pessoas e uma escolinha para atletas da divisão de base. Também treinam no complexo as Dragonas, orgulho do futebol feminino do Equador.
Atualmente, mais de uma centena de jovens, entre 11 e 19 anos, aprendem o ofício do futebol e caminham rumo à profissionalização nesse grandioso complexo esportivo. E o Del Valle, por sua vez, tem olheiros espalhados por todo o país, responsáveis pelo garimpo de jovens para a sua equipe e, inevitavelmente, também para a Copa do Mundo e para o promissor futuro do futebol equatoriano.
Ao mesmo tempo em que as peladas do país crescem em qualidade, quem também cresce é o movimento indígena do Equador. Mesmo derrotado nas urnas, nas eleições de 2021, eles ganham cada vez mais força. E Leonidas Iza, citado anteriormente neste texto, em pífia tentativa de metáfora deste escritor virtualmente aposentado, ganha cada vez mais mais peso no tabuleiro político do país.
Não só no futebol, mas também na política internacional, a tendência é que o Equador se torne uma pedra no sapato das classes dominantes. Sejam elas compostas por príncipes árabes ou por empresários católicos, como Guillermo Lasso.
Torço para que façam uma bela de uma Copa do Mundo.
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Mateus Magalhães é poeta, jornalista, compositor e frontman da banda Azul Azul. Como escritor, publicou os livros Quem Tabelar Com Toni Ganha um Fusca (2015) e Malu e a Bagaceira (2017), ambos pela Imprensa Oficial Graciliano Ramos. Atualmente, prepara o lançamento de A Barca do Sol, o segundo disco do seu projeto solo, e Sanhaçu, seu primeiro romance.
✦ acidente / resenha
THE BIBLE — Lambchop
Mateus Borges
Na primeira música de The Bible, décimo-sexto álbum do Lambchop, o narrador encontra um parente idoso afundado numa poltrona, absorto nos próprios papéis e números, e sonhando com um mundo para além janela, no qual as rodovias que cortam a casa anunciam um clima mais agradável. A cena é construída como o pesadelo de qualquer filho: os nervos acelerados, a certeza de morte a cada passo, as cordas e o piano flutuando num vácuo que, aos poucos, se transforma num tipo estranho de alívio. Ao final do pequeno conto, os personagens conversam de “ideias soltas e abstratas”, preenchendo os dias com a expectativa de mais alguns.
Idade é tema central a essa terceira fase do Lambchop. As texturas eletrônicas riscando o fundo imperial das músicas, os samples de vozes semidescoladas, os chiados cheios de arpejos e os instrumentos processados além do reconhecível: tudo se amontoa num esforço não só de decoração, mas de reconfiguração formal na busca por outra memória. Sempre dialogando com a velha guarda de Nashville, o Lambchop costumava ser um risco torto pelo calço do alt-country, do soul e da música de tradição americana como um todo. O croonerismo do álbum Nixon, as cordas sinatrianas do Mr. M, o funk desacelerado e pastoral de What Another Man Spills. Há nesses discos a preocupação jovem de se imbricar à produção musical do seu local de vida e do seu tempo de ofício, de se entender como um artista que produz Ali e Agora. Mas para Wagner a idade acelerou um outro modelo de preocupação: onde a minha memória se encontra nesse arranjo já precário? E qual música quero fazer com essa insuficiência, com esse arranjo precário que já é invariavelmente meu, embora também seja emprestado, sonegado e inautêntico?
A crise em questão eclode no disco FLOTUS, de 2013, e é ilustrada pela belíssima “The Hustle”, de 18 minutos. Os sintetizadores e baterias digitais entram de vez na jogada, e os belíssimos vocais são envelopados até a ininteligibilidade. Os timbres novos e os tempos novos dessas canções mudam o vetor das letras: a memória mais histórica e oblíqua de um passado coletivo cheio de contradições, tema cativo ao Lambchop em canções com “The Decline of Country and Western Civilization”, vira uma memória pessoal frouxamente acomodada, quase à busca de algum tipo de conciliação ou catarse.
This (Is What I Wanted to Tell You) e Showtunes, os dois álbuns subsequentes, desenvolvem a ideia, passeando pelos desconfortos do Trumpismo e da pandemia, respectivamente. Já The Bible nos oferece uma espécie de encontro entre diversas fases: voltam os baixos gravados em amplificadores antigos, voltam as guitarras e as cordas suntuosas, voltam vozes para além da voz de Wagner. Volta, enfim, um velho do Lambchop para complicar o Lambchop atual, numa voltagem bruta.
Faixas como “Whatever, Mortal” exibem um jogo de cintura algo inédito na discografia do grupo, com arranjos de sopro se entroncando e se separando em movimentos soltos, um acúmulo delicioso que devassa a segunda metade da faixa. “Little Black Boxes” retoma o disco há muito ausente do repertório da banda, com a passagem romântica mais acachapante de todos os cinquenta minutos da obra. Já baladas lentas de piano como “Daisy” e “Every Child Begins The World Again” mesclam o individual e o histórico como se cada homenagem fosse um mea culpa, um glitch passando como um fantasma. Sim, eu invado o caixão do ídolo histórico do country, Hank Williams, mas é só porque “a melhor parte do homem logo é lavrada à alma”. Sim, a idade mancha os meus dedos como os dedos do meu pai, lá na faixa de abertura, mas aquele atorzinho Fred MacMurray era um filho da puta mesmo, como você sempre me falou.
Na mesma “Daisy”, Wagner menciona, sob a sombra da escada: tentar fazer com que as folhas parem de cair. Talvez o único problema do disco seja o soar mais técnico e esgarçado de momentos como esse. Ao contrário dos discos produzidos em conjunto com Mark Nevers ou Jeremy Ferguson, as escolhas para os vocais desse álbum deixam a desejar na captura do desenho de voz. Olhe para faixas como “The Last Benedict”, do Showtunes, e é fácil ver como o cantor brilha sem dificuldades, ou olhe para faixas como “In Care of 8675309”, do FLOTUS, e é igualmente fácil notar que não tem nada a ver com baixa ou alta fidelidade, ou com usar os efeitos na voz ou não. Kurt Wagner pode soar bem em todas essas escolhas, mas algumas das feitas em The Bible não favorecem a produção de faixas, como a entediante “A Major Minor Drag” ou a exagerada-e-ainda-magrinha “Police Dog Blues”.
Nada disso impede que a história se conte por completo. Na última faixa, “That’s Music”, o pai adormecido retorna como um estranho – já dentro de casa se pode reconhecer um outro pelo que a voz falha ou curva. Uma criança pequena olha para Tommie Smith na TV erguendo seu punho, e um adulto comenta que ele entrou para o Grand Ole Opry, o panteão racista do country americano se esfacelando frente à “ciência da velocidade”, uma imagem tão sublimada e acirrada quanto de providência. Nas últimas linhas, Wagner menciona uma geração selvagem que vai chutar o seu traseiro, surpreendê-lo, e agora já não se sabe bem a partir de qual tempo ou de quem ou para quem ele fala. Tudo ao mesmo tempo, talvez, nesse cemitério reformado. “Isso é música”, ele diz, o trompete deslizando no abismo e fincando ares ali. Sim.
Lambchop
The Bible
Merge Records • 51 mins.
✦
Mateus Borges é editor da Acidente e lançou os discos Fitas P/ O Terceiro Filme (2020) e Nocaute (2021), ambos sob o nome Cães de Prata.
✦ acidente / coleta
giro #3
Mateus Borges
Um breve giro no último trimestre para não queimarmos o cartucho da Acidente #4 com a nossa primeira edição das listas de fim de ano. Já no forno, breve em suas caixas de entrada.
Love the Stranger — Friendship (alt-country/folk)
Paste — Moin (guitarra/manipulação eletrônica)
Playing Nowhere — Masatomo Yoshizawa, XTAL (guitarra/bateria eletrônica)
Out there in the middle of nowhere — John Also Bennett (lap steel solo/ambient)
Solos — Dickie Landry (free jazz)
Mondays at The Enfield Tennis Academy — Jeff Parker ETA IVtet (psych jazz)
You Will Not Die — Darren Hayman (pop rock/folk/eletrônico)
Hello Eyes — Eric Chenaux (colagem/jazz)
Meeting with a Judas Tree — Duval Timothy (eletrônico/jazz/hip hop/piano)
Laminated Denim — King Gizzard & The Lizard Wizard (rock)
UNRECORDED HISTORY — Clarence Clarity (pop torto subaquático)
Sent from my Telephone — VOICE ACTOR (colagem/eletrônico/folk/ambient)
Habilidades Extraordinárias — Tulipa Ruiz (pop torto)
Distance — Ad Hoc (experimental)
Is It What You Want — Lee Tracy e Isaac Manning (funk/soul)
Comradely Objects — Horse Lords (rock)
Mint Chip — Kamikaze Palm Tree (art rock)
✦ acidente / poesia
Nota dos editores: pedimos que Nathalia Leal e Nathalia Bezerra conversassem sobre “telescópio”, de Louise Glück — esse é só um pedaço de uma conversa maior.
~
telescópio
há um momento após você desviar o olhar,
em que você esquece onde está
porque viveu por um tempo, parece,
em algum outro lugar, no silêncio do céu noturno.
você deixou de estar aqui no mundo.
está num lugar diferente,
um lugar onde a vida humana não significa nada.
você não é uma criatura em um corpo.
você existe como as estrelas existem,
participando de sua imobilidade, sua imensidão.
depois você está outra vez no mundo.
à noite, na colina gelada,
desmontando o telescópio.
você se dá conta mais tarde
não de que a imagem é falsa
mas de que a relação é falsa.
você vê outra vez a que distância
está cada coisa de cada outra coisa.
— louise glück (trad. heloisa jahn)
dez chamamentos ao amigo
I.
se te pareço noturna e imperfeita
olha-me de novo. porque esta noite
olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
e era como se a água
desejasse
escapar de sua casa que é o rio
e deslizando, apenas, nem tocar a margem
te olhei. e há tanto tempo
entendo que sou terra. há tanto tempo
espero
que o teu corpo de água mais fraterno
se estenda sobre o meu. pastor e nauta
olha-me de novo. com menos altivez.
e mais atento
— hilda hilst
carta um (ou um prefácio do depois)
nath,
te escrevo de novembro e passei o dia com ela, a hilda hilst na cabeça. me lembrou. não sei o que te lembra mas me parece que um telescópio pode ver coisas grandes ainda maiores, mas pode ser também esse procedimento de ver de perto o que cabe no nosso olho.
parece um instrumento que pode não só colocar os olhos fora, ao longe (essa coisa distante, esse outro mundo, essa terra estrangeira) mas também pode ser jeito de ver no olho um fundo, atravessar um outro corpo pelo ato de ver de perto.
não pensei em um formato pra nós, se haveria.
penso que os nomes iguais guardam nosso segredo mais dolorido: o de que a gente escreve pra pra voltar ao nosso próprio nome.
tem vezes que escrever sobre coisas gigantes demais me assusta um pouco. nunca sei até onde a palavra cabe, qual a distância entre um planeta e seu nome quando ainda é inexistente. o que acontece nesse outro espaço distante. acho bonito o jeito como dar às coisas um nome cria uma existência, ampara um dorso, cria um corpo onde antes não tinha. dia desses li todos os nomes de saramago e ele fala uma coisa muito urgente que vou te dizer aqui: "o que está a ver de mim também é uma pele, aliás, a pele é tudo quanto queremos que os outros vejam de nós". penso nessa superfície que nos acompanha toda vida: não intacta, não sem medo. gosto demais de dizer de pele porque é dessas poucas coisas na vida cujo tamanho vai até onde nosso corpo vai. como se mede distância entre duas peles?
acho que fico ainda muito capturada por esse mistério e talvez eu não saiba começar sem que não seja por coisas muito pequenas primeiro. queria primeiro ter como descrever algo parecido com a sensação de que se veja uma coisa pela primeira vez. essa mania de ver as coisas perto demais é meio esquisita. de umas semanas pra cá tenho tido sonhos muito vividos, de viver no passado mesmo: uma coletânea meio absurda de desejos não realizados, de fragmentos e pequenos memoriais, rostos de gente conhecida e desconhecida. parece que tem alguma coisa que me vê de perto por dentro, antes de mim e até antes da pressa em abrir os olhos. silêncio nessa cidade não existe. em mim, há um pouco que chora só quando adormece (não feche os olhos agora). se pudesse, ainda te diria que um dia vi a memória com os dedos muito vermelhos, feito uma parede imóvel, um quarto vazio pintado de casca. já não te cabe nesse peito e parece que me volta essa vontade de pisar fora e pelo menos uma vez ver de longe, ver tudo de longe.
na altura dos olhos quase tudo parece perto da gente. queria que houvesse um jeito de que se atravesse um corpo pela beirinha de um olho, essa coisa móvel e inquieta, desencontrada e estranha como quase tudo que a gente vê (acho que nisso mora uma coisa em que acredito, mas eu não vou falar aqui)
te digo que é pelo espanto e pela estranheza que eu fico, sempre fico.
da muito pequena,
nathalia
***
poema sem um nome
há um ato escorregadio no gesto de te ver de perto
os cabelos a queda das costas os dedos inquietos
nesta noite nesta pele que antecede o gesto
o momento exato antes de que abram os olhos:
aqui, romper a cidade
pouco a pouco, desmontar a equivalência
você e essa imagem sólida
(quando éramos rio, um regresso)
se te digo pedra, teus dentes
macios não conhecem o gosto
ver de perto o fundo do teu rosto
e devagar, te dizer
esta é a última vez
em que piso nesta terra
uma desmontagem do corpo acontece
toda vez na curva desses olhos tristes
esse lugar já não é nosso
essa volta já não é pequena
(ainda não aconteci)
é só a memória do teu corpo:
as palpitações as vértebras a coluna
teu peito ainda cheio de lágrimas
os pés ainda curvados de tanto correr aquela noite
nada disso neste mundo existe
21.11.22, por volta das 01:00
(é uma data curiosa, não? dá pra brincar com esses números)
nath,
no dia em que completei vinte e oito anos, a lua sofreu seu último eclipse lunar total até 2025. até lá, não haverá o alinhamento perfeito entre a terra, seu satélite natural, e o sol. suas rotas não irão coincidir e esses três pontos irão percorrer trajetórias distintas à sua maneira. não haverá encontro perfeito. não haverá o momento em que, por algumas horas, a lua imprimirá em sua superfície, vista daqui por nós, a sombra da terra que lhe impede a luz solar plena, desaparecendo momentaneamente, no ângulo exato.
e tudo persiste, ainda assim, por mais piegas que seja admiti-lo. a ausência de alinhamento é um dado disponível a poucos, que devem comunicar aos demais a notícia: não haverá eclipse. ainda assim, a existência/visão dos astros e de tudo que está a distâncias inatingíveis se impõe a cada segundo – um pouco menos nos dias de lua nova, talvez - e é requisito de existência. (e me pergunto, depois, quais são as variáveis astronômicas que distinguem as fases da lua do eclipse, alçado a evento tão raro e simbólico).
estamos no mesmo planeta, talvez apenas em outro hemisfério, mas este último eclipse não nos era visível. não existiu para nós, por questão geográfica. contudo, saber que algo acontece no universo, em nossa superfície, ainda que não sob o nosso olhar, me pôs pensativa de alguma maneira, ainda que de modo banal:
se existo no mundo
onde há o último eclipse lunar total dos últimos anos
e não o vejo
ele existe?
e isso reverberou de maneira que só as coincidências fabricadas e a ânsia do simbólico podem causar. acho um pouco bobo, porém, em retrospecto. nada mais do que um lampejo fabricado.
então, me despeço dos misticismos e de toda a grandiosidade que é inspirada pelas reflexões sobre o universo e penso que a terra - esse astro que precisa de 365 dias, 5 horas e alguns quebrados para completar uma volta ao redor do sol, período este que convencionamos chamar de ano, e cujo espaço temporal evoca também aniversário (etimologicamente, “o que volta todo ano”, dizem) - é, por si só, repleta do que não se pode ver e, contudo, existe.
(há momentos em que me espanto com a obviedade do que tento concluir. não penso muito ao escrever esta carta. penso que tudo é transbordamento, ensaio, exercício. e, é claro que sim, quase tudo é invisível. é esta a matéria do nosso corpo).
***
miro o mar como superfície opaca
ingênua de ter apreendido o teu todo
à mesma maneira que esquadrinho as linhas de ti
(nesta superfície rochosa)
dedos em riste
nada à vista
é vítrea a superfície que
corta o olhar
a primeira vez que vi o mar
(ou o que compreende a sua superfície, esse ponto ainda intangível)
a primeira vez em que o vi, repito,
verdadeiramente
sem altercações
sem subterfúgios
sem salva-vidas
foi quando nossa presença se confundia
não havia mais um corpo
apenas um bloco uno
nada à vista
somente a presença que adentra outra
subjugada em mistério e extensão
dentro de ti, soterrada
éramos um só
assim enxergo
07.12.2022
nath,
há quase um mês descobri que não haveria mais eclipse. pensando em termos exatos, apenas um dia separa a conclusão do ciclo, a volta perfeita a partir do registro no calendário que marcou a descoberta. mas é detalhe inútil. é bom te escrever novamente. o tempo que nos separa parece seguir sua ordem própria, alheio aos ditames que marcam a sua cronologia. minha ausência aqui me parecia eterna. veja só como são as coisas, me diriam.
mas, veja.
nos aproximamos de mais um prenúncio do fim, de mais um ano completo (este, de todos), e neste percurso interminável de dias que separa nosso último encontro, essa é a primeira vez que respiro. nesse ínterim, tive a notícia de dois estranhos que pararam definitivamente de fazê-lo. um deles ignorava o caos que ocorria dentro de seu próprio corpo, este mundo invisível, descoberto apenas quando já se arrebatava dele. o outro, que completou sua própria volta já no leito, tinha o caos do corpo exposto em grande parte, materializado pelos espasmos e mudança de forma durante os longos dias que prenunciaram seu fim. ambos deixam a imagem amada aos que ficaram.
ver as coisas pequenas. quando penso em olhar, penso na fascinação mútua que tinha por microscópios e telescópios quando criança. na gaveta da cozinha, uma luneta fazias as vezes de nos aproximar da lua, sempre que desejávamos. de presente, pedi um microscópio para fazer as vezes do meu próprio olho, tão limitado. passava os dias tentando apreender o mundo sob as lentes que ampliavam tudo, em tantas vezes. todo um novo universo que antes me parecia invisível - à semelhança do outro mundo, aquele das distâncias inimagináveis, que também me fascinava e aterrorizava em igual proporção.
lembro bem como almejava ver qual era a matéria do meu próprio corpo. pensava nas ocasiões em que poderia examinar-me, ansiava pelo momento em que jorraria ao mundo externo e assim, finalmente, poderia saber do que era feita. eu queria ver. longamente. detalhadamente. num ato solitário, este único ato que é a visão, único e nosso. queria examinar as texturas, as cores, ranhuras. queria ver mesmo o que era impossível às especificações do meu microscópio infantil (e, ato falho, aqui escrevi telescópio inicialmente). curiosamente, nenhuma gota de sangue - a tão desejada amostra de si - jorrou do meu corpo nesse período. eu era uma criança que não ralava os joelhos. ainda pensei em abrir espaço, incisão, um pequeno furo. tudo pela ciência. na verdade, não tive a coragem. até hoje não conheço a matéria do meu sangue. ainda tenho o microscópio, deteriorado, guardado junto a outros objetos da memória.
mais tarde, me deparei com a matéria do corpo. e disso tenho boas e más lembranças.
você me diz de saramago, e lembro de um documentário em que a varda conta como filmou demy, seu grande amor, pouco antes de sua morte: ela o filmava de muito perto, como se quisesse adentrá-lo, sua pele transformada em textura, justamente porque o amava e queria apreendê-lo na iminência de sua perda. uma visão microscópica, influenciada pelo sentimento profundo, refletida na superfície da pele. ou uma visão telescópica, por ver tão de perto o que está de fato perto, mas é sempre visto de mais longe. não sei mais o que digo. não há olhar incólume. e, dentre as boas lembranças, lembro também da primeira vez que li brakhage dizer que tentava buscar em seus filmes (meras películas pintadas por tinta) um olhar que fosse infantil, ainda não contaminado pelos significados que impregnam o mundo. um olhar que se surpreendesse com o que vê, que é aberto às mutabilidades e abstrações. e penso na empreitada impossível que advém disso. talvez seja justamente o sentimento que nos aproxime desse ver.
mas olhar para o corpo sempre me emociona, de um modo ou de outro. e penso também nas vezes em que ver sua materialidade foi tão aterrorizante quanto ver o mar quando muito dentro dele, sem terra à vista, sem amparo, apta a ser soterrada por sua presença. na iminência da morte de quem eu mesma amava, vi seus olhos se tornarem vítreos, depois de permanecerem fechados por um longo tempo. imagine um olho que não vê. imagine um olho aberto, em sua extensão física máxima, mas sem função. um olho que não existe nem mesmo metaforicamente, ao contrário do olhar de um fotógrafo cego, que enxerga pelo tato e, portanto, produz imagens. acho que essa é a violência máxima do olhar. o olho vítreo. superfície verde-azulada opaca, como o mar em dias de chuva. um corpo que se levanta, gira serenamente a cabeça, mas não enxerga ou reage ao exterior porque não está mais lá. e é este o grande mistério que nunca compreenderei. é essa a opressiva materialidade do corpo, também. é esse o meu contato mais próximo com enxergar a morte. é este o início da perda, enfim materializado. o corpo inatravessável pelo ver. a cegueira absoluta. a opressão da visão.
você me fala do azul. é minha cor preferida. e, nessa carta tão extensa, lembro novamente de um olhar. há um filme em que o espectador precisa cegar-se voluntariamente para compreendê-lo. é como mergulhar no mar: apenas a experiência concretiza a sensação. não há descrição que ampare. quem me ensinou isso foi jarman, em blue. um tela azul, apenas. uma tela azul impassível, que simula a cegueira que passava a acometer o próprio cineasta. de novo, um leito de morte. filme-testamento. e o pacto entre quem não enxerga mais e quem decide ver o filme, mas atua como voyeur e companheiro voluntário da cegueira. penso aí em como colocamos um pouco de si em tudo, seja no que escolhemos ver, seja nas imagens que retemos e produzimos. gosto da ideia de um filme sem imagens (além das evocadas), assim como também gosto da ideia de uma letra sem som (que você me evoca) e da antinomia entre os joelhos constantemente ralados e os que nunca o são.
eu quase nunca sonho, isso é verdade. às vezes tenho pesadelos com imagens que gostaria de esquecer - e muito delas está relacionado ao corpo do olho vítreo e sua deterioração, a visão do corpo em sua matéria plena. o olhar nunca é incólume, repito, mas às vezes o ato de ver com os próprios olhos (novamente, brakhage, dessa vez em seu filme que traz corpos dissecados, o humano reduzida à sua animalidade, carne e ossos) é mais do que se pode sustentar ver. é demais. convém fechar os olhos, por um momento. convém fechar esse intervalo. quero lembrar de outra visão.
(e já passa da meia-noite. é dia 8. um mês da minha volta completa. um mês do conhecimento da ausência de novos eclipses.)
nath, a adélia prado também sonhava com azuis. e fazia poemas sobre azuis macios, sobre a imagem de uma cor dentro de um sonho. sonhar uma cor. escrever um poema para não esquecer do que viu e sentiu em sonho. transcrevi o próprio poema num caderno também para não esquecê-lo. e ali compilei por muito tempo pequenos excertos sobre tudo o que era azul. mas havia esquecido, ainda assim. foi preciso que você me lembrasse. é esta a tal da arte do encontro. a visão é solitária, mas enxergar é um ato compartilhado.
gosto dessa ideia. é por isso que te escrevo.
e não apenas.
***
fora deste mundo
sem espaço, nem tempo
investigo as imagens soterradas
há uma palavra (um nome)
para a incapacidade de enxergar o azul
acianoblepsia
ou para a incapacidade de reconhecer rostos
a face sua ou alheia
prosopagnosia
há uma palavra para quase tudo
às vezes sob a aura de estrangeira dentro da própria língua
mas
não há nome para nós
o nome próprio requer escavação
veja só
mesmo toda ciência é feita de poesia
(assim falamos de telescópios, lentes e microscópios)
cá estão as cartas
a física pensa por abstrações
o que rege o mundo é o absurdo
transubstanciado num modelo que diz ser apenas lógica
essa outra invenção
é, esse, o sonho, o princípio de tudo
sonhar uma espécie de azul
imaginar um novo modo de matéria
domesticá-la crente de que é este o afã
pensar a forma do átomo
colidir raios catódicos
inventa-se uma imagem para o indizível
apreende-se um mundo cuja existência é conjectura
daí nasce a hipótese, essa gênese
tudo o que vemos não é possível enxergar
e é essa
a pele que nos reveste
mera especulação
essa existência que
esse desejo que
esse olhar que
esse dizer
é mero gesto
escuta
vê
o nome que procuras
encontrarás no peixe
no sangue
no toque
no telescópio
sem jamais dizê-lo
carta dois (ou coisas que deveria dizer antes)
nath,
ontem tive um sonho em que eu era um peixe. nele, tudo sobre respirar não se parecia com um afogamento e muito lentamente a hora de fechar os olhos era indolor. não sei se já te contei que muitas das vezes me imagino mais bicho que gente. talvez isso tenha a ver com minha falta de jeito com os gestos. nasci muito pequena e antes do tempo. talvez por isso minha pressa, essa minha apreciação por tudo que é pequeno. me fascina tua história dos microscópios e as lunetas na gaveta da cozinha. acho que eu sempre quis ver como era o sangue de perto. quando criança, sempre ralava os joelhos na calçada e curiosa pela cor vermelho tão viva, tão ardente. parece que tudo que queima e fere tem essa cor, esse grito. uma fera miúda, eu te diria ainda. é com os joelhos manchados de sangue, o rosto cansado de chorar e as mãozinhas pequenas limpando os olhos eu lembro de já ter me perguntado como pode doer algo tão bonito. gostava da cor do sangue e de arriscar colocar as mãos no fogo.
outro dia tive um sonho com uma capa muito azul. durou um instante apenas: o rosto cinza, a chuva fraca. nisso tudo tinha um resquício da hora em que acordava assustada, a pequena pilha de livros lidos pela metade ao lado da cabeça. não te encontrei. ainda faltavam dezenove capítulos. arrastava devagar as horas e parecia que todo dia era repetidamente o mesmo. suporto pouco o tédio. as pernas balançam quando imóveis, os dedos sempre à procura de outros. isso é uma história pra que você fique: veja, ainda sou a mesma. veja, uma tentativa de pequena morte. havia um barulho do portão de metal e os latidos de cachorro, exatamente do mesmo jeito como era antes. naquele tempo, ainda pingava o suor pelo pescoço. aguentava mais tempo de pé.
dia desses precisei escrever muitos poemas de uma só vez pra mandar, feito meu costume, nas últimas horas antes do fim. a adrenalina parece que é jeito de me lembrar que ainda há vida, que há um corpo (nesta hora, dos últimos minutos, não há agonia nem desespero). só a face calma e a sensação inútil de que, mais uma vez, a escrita só me acontece quando não há mais tempo. muita coisa em mim só acontece desse jeito: a fuga dos ossos, os pés prontos pra correr, uma agonia cuidadosamente planejada. sou muito neurótica, nathalia. espero que você não pareça comigo. ando usando muito o verbo haver ultimamente: havia, há, haverá, houve. gosto da ideia de uma letra sem som, mas acho que eu gosto mais ainda de usar um verbo que magicamente proclama uma existência. aquilo que te falei antes das coisas sem nome ainda me inquieta, mas acho que aqui há algo que me assombra ainda mais: fazer existir uma palavra por um verbo anterior, criar um acontecimento que não passa de um punhado de letras.
apesar disso tudo, já que a gente fala dos jeitos de ver o mundo, era uma pessoa com os olhos tristes e grandes que se fechavam quando sorria: acreditava que era jeito de não ver o mundo caindo na frente, de sustentar esse minuto (como se fosse possível segurar o riso por mais tempo de olho fechado). sempre falam dos meus olhos. dizem que quando abertos parecem grandes demais, feito uma fúria quase disposta a engolir o mundo. penso que talvez só não o faça porque sempre na hora de sorrir, na hora de uma gargalhada desavisada, meus olhos ficam pequenos e irrisórios e já não vejo nada à minha frente: de que adianta os olhos grandes dispostos a engolir o mundo se os fecho na hora de achar graça?
ainda olho pra aquela que fui e não me encontro.
da outra vez te falei de pele e tudo o que se toca só existe em contato com essa matéria, essa película exposta da gente. mas entre duas coisas inexistentes, me conta se tu sabe nathalia, do que acontece pra tocar o invisível? penso que a distância talvez seja uma delas. aqui, te meço a distância com duas medidas: a primeira, como um plano de pouso. a segunda, como uma fronteira com a vista. disso tudo só me importa a hora do limite, essa vontade de que se ultrapasse uma beira sem saber a hora do corte. nisso em achar um jeito de te dizer das distâncias e das coisas invisíveis, me lembrei da ana martins marques no poema jet lag do livro roxo. isso é outro segredo meu, nathalia: poucos são os nomes que eu guardo. penso que escrever um nome proclama uma presença, e isso eu não sei até onde aguento. fazer existir uma pessoa num texto: dar um nome, criar um ser que talvez só exista aqui. sustentar nascer e morrer na mesma face.
nas palavras dela:
"a distância é erótica
mas quem deseja
deseja uma saída
guardo na boca fechada
as três sílabas
do teu nome"
eu também guardaria esse teu nome de boca fechada se coubesse. acho meu nome grande demais. me incomoda imensamente serem oito letras porque não gosto de números pares. mas agora há pouco reparei que dentro desse mesmo nome tem o verbo haver. não sei o que existe dentro disso. mas tu já reparou em como sai da boca uma pronúncia, o jeito como alguém diz esse nome feito um segredo, um grito, um sussurro, um pedido. acho que tudo tem a ver com timbre, o jeito como vibra um dizer na garganta. eu gosto de imaginar a textura das palavras fora da boca, especialmente as que arranham.
digo assim, feito um pedido, porque eu acho que escrever cabe essa urgência de uma demanda, de inventar uma necessidade, de existir pelo menos aqui em ficção. é nisso que me agarro quando acontece o desejo da distância desse mundo. escrever me faz regressar nessa vontade de morder palavra feito pedra, se voltar à terra como quem volta ã vida.
continuo sonhando os peixes e coisas azuis,
nathalia
***
poema sem nome dois
tocar com os dedos tua face agora imóvel
e antes mesmo do ritmo
inventar uma língua aos desastres
você chega e me diz nas horas mais pequenas
(a fragilidade do teu verbo)
isso não se fere fácil
ainda hoje te procuro
como se fosse de rio ou de água a nossa carne
voltaríamos ao mesmo lugar, freneticamente
(neste espaço, não há tempo)
cuidadosamente, sem emitir ruído
de você, tudo
vira um muito nessa pele
como quem inaugura um acontecimento
ainda sobra um segredo
no ato de ser olhada
aqui, atravessar dois corpos
o gesto que antecede o gosto
guardo nos olhos, sempre nos olhos
um jeito de te ver sem que rasgue
essa coisa turva
esse cheiro de sangue
não te olho e só assim entendo
desejo é feito água nossa
regresso no teu como quem volta à casa
(ainda baixo, te digo)
deixar de estar no mundo é
não morrer aos miúdos agora
te escrevo, agora
pra voltar a um nome próprio
pra sobreviver ao resto
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Nathalia Bezerra
nathalia bezerra é alagoana (maceió, 1997). fotografa e pesquisa literatura. escreve na revista alagoana e na revista mormaço.
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Nathalia Leal
nathalia leal (maceió, 1994) é jornalista não-praticante e colecionadora de textos engavetados.